Querido doutor

Estou triste e lembrei que podia escrever, como eu fazia quando estava na depressão. Estou triste  mas é uma tristeza muito diferente daquele horror. Não tenho aquela aflição e não tenho o desespero daquela época, sei bem que isto agora é um sentimento passageiro, sem maior gravidade, não vai durar muito. E decerto também fiquei triste me lembrando que estamos quase no Natal  e será meu primeiro natal sem Natal, sem minha Mãe, só a lembrança dela.

Uma das minhas irmãs, a Helena, há algum tempo,  depois que se separou, veio morar aqui conosco, comigo e a nossa Mãe; foi sempre uma ótima companhia e nos confortávamos, uma com a outra, nesses últimos anos em que a Mãe estava doente, sofrendo e depois  perdendo a lucidez.

A Mãe faleceu há seis meses e minha irmã foi embora há quinze dias, para morar com a filha que se separou há pouco e se mudou  para São Paulo.

Para você não ter que fazer os cálculos, lhe digo direto que já estou com 55 anos. Como não casei, fiquei morando com a minha mãe, moramos nesta casa desde que eu tinha 15 anos.

É uma tristeza grande  estar aqui na casa sem as outras pessoas. Sei bem que ninguém me abandonou  e temos um bom relacionamento. Simplesmente o que aconteceu foi que meu irmão e minhas irmãs foram viver suas vidas. Eu sempre soube que isso poderia acontecer, mas não ficava  remoendo isso, não  adiantaria  imaginar de antemão.

Já estava me acostumando com a morte da minha Mãe, já sinto  um pouco menos a falta dela embora cada dia ainda me  lembre mil vezes. Porem a Helena era uma boa companhia; agora sinto falta, a casa está cheia de lembranças dela e é quase como se ela também tivesse morrido, mas sei que está bem viva com a filha e os netos. Nos últimos dias, chorei muito, andando pela casa vazia.

Talvez isso é o que se pode chamar também de nostalgia, sentindo a falta de um tempo que não vai voltar. A casa é grande e cada ambiente ficou maior e mais antigo. E eu também fiquei super antiga porque cada objeto fala de um período que passou, é tudo passado.  Eu ouço os sons do dia a dia daquele tempo, ouço  até as vozes das  festas cheias de gente, quando éramos jovens.

Comecei a enxergar de novo as imagens da minha infância, com uma saudade sofrida de tanta coisa que acabou já há décadas mas dói agora! Lembranças também de que eu sofria, por nada grave mas eu sofria, talvez já um prelúdio da depressão que estourou anos depois e que você me ajudou a compreender e superar.

Então hoje fui fazer uma seleção de músicas para ouvir, uma mistura de autores e artistas; cada uma lembra uma fase e eu adorava fazer seleções assim, só que agora machuca. Cada música me lembra uma época que passou, que eu perdi no tempo. Talvez isso seja também um pouco daquela depressão doença, estou pensando que tenho que telefonar, vou telefonar e talvez tomar um pouco do remédio que você dizia que devo sempre ter em casa porque  talvez precise usar de vez em quando,

Ah!

Você lembra como eu reclamava das injustiças, das raivas, da incompreensão, e tudo isso que certamente eu também provocava nos outros mas tinha gente comigo, pessoas, tinha vida.

E agora acabou. Nada vai sair do lugar, não tem mais ninguém para apagar uma luz, nada. Eu fico aqui na minha sala, de que tanto gosto, mas quando olho para o corredor da parte antiga da casa eu lembro também de um dos pesadelos de criança,  de como o corredor parecia perigoso.

Nos outros quartos da casa restou só o que não é importante para ninguém, uma bagunça escura que denuncia o abandono com berros de fantasma. Ninguém quer ficar neles, nem quer nada do que está neles, e ninguém quer ser aquele que se atreveu a jogar fora coisas e tralhas tão simbólicas. É isso, o  passado da minha família virou um monte de tralhas que está me assombrando.

Vou lhe telefonar para pedir uma consulta, lhe mando isto agora por e-mail, como você dizia para eu fazer, para já ir adiantando. E é muito diferente daquela época da depressão, é um tristeza triste mas sem desespero, sei com certeza que vai passar e vou ficar bem, graças e você e a mim, graças a mim e a você.