Eis um relato de uma menina ativa, mas sem um ambiente familiar protetor:
Em criança, eu era extremamente esperta, inteligente, criativa, curiosa, interessada e interessante, cosmopolita, uma liderança nata, onde quer que me encontrasse - especialmente se fora de casa.
Penso que meus pais se sentiam desconfortáveis com a minha expontaniedade, um casal absurdamente religioso, quase ignorantemente religioso, cobertos de toda a forma de preconceitos.
Realmente, me recordo como desde muito pequena eu era inovadora e as pessoas se encantavam comigo. Enquanto meu irmão ficava “grudado” nos meus pais, com menos de seis anos eu já incomodava pedindo para pernoitar na casa das minhas amiguinhas.
Aliás, recordo de perto dos quatro anos já pleitear a permanência por vários dias na casa dos meus padrinhos e dos meus avós. Eu adorava conviver com outros familiares. Hoje, percebo como isso me permitia experimentar outros papéis - de afilhada, neta, conviver com priminhas - mas não o papel de filha.
Meus momentos de lazer eram normalmente passados com outras crianças, em brincadeiras na calçada, bonecas, bola ou bicicleta. Não recordo de momentos de brincadeira solitária. Mas depois, quando já estava mais velha, com dez anos ou mais, comecei a mudar, permanecer longos períodos sozinha em casa, me entretendo com filmes na televisão, tipo “sessão da tarde”.
O meu relacionamento com meu irmão não poderia ser pior, éramos como cão e gato, muitos atritos, brigas e implicância. Não recordo de companheirismo, camaradagem ou apoio mútuo. Recordo de um ou outro episódio isolado mais ameno, normalmente, em momentos de sofrimento dele. Fora isso, sempre havia muito ciúme e competição entre nós.
E meus pais nos comparavam muito, apesar de sermos absurdamente diferentes. Temos quatro anos de diferença, ele tem vinte e sete, eu tenho trinta e um. Homem e Mulher. Ele programado e querido, eu nasci por acidente. Ele sisudo, introvertido, irônico, lacônico, muito inteligente. Eu extrovertida, tagarela, curiosa, e um pouquinho tendente a inventar histórias.
Não sei como me vejo agora nesta triste condição, me sinto muito mal, muito mal mesmo, irritada, revoltada, descontente.
Como eu fui capaz de me colocar nesta condição? Sem trabalho, sem namorado, quase sem amigas. Onde foi que eu errei?
Eu era tão animada e agora tão perdida.
- Será que já não passei por humilhações suficientes?